quinta-feira, 15 de abril de 2010

Como uma onda no mar

Sabe o mar?

Pois então:
ele vai... mas volta (mas nunca sabemos quando, e nem como).

Hoje eu tô afim de Luis Fernando Veríssimo.
Vai aí um conto de terror, pras noites solitárias dos desavisados.

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Sozinhos

Esta idéia para um conto de terror é tão terrível que, logo depois de tê-la, me arrependi. Mas já estava tida, não adiantava mais. Você, leitor, no entanto, tem uma escolha. Pode parar aqui, e se poupar, ou ler até o fim e provavelmente nunca mais dormir. Vejo que decidiu continuar. Muito bem, vamos em frente. Talvez, posta no papel, a idéia perca um pouco do seu poder de susto. Mas não posso garantir nada. É assim:

Um casal de velhos mora sozinho numa casa. Já criaram os filhos, os netos já estão grandes, só lhes resta implicar um com o outro. Retomam com novo fervor uma discussão antiga. Ela diz que ele ronca quando dorme, ele diz que é mentira.
- Ronca.
- Não ronco.
- Ele diz que não ronca - comenta ela, impaciente, como se falasse com uma terceira pessoa.
Mas não existe outra pessoa na casa. Os filhos raramente visitam. Os netos, nunca. A empregada vem de manhã, faz o almoço, deixa o jantar e sai cedo. Ficam os dois sozinhos.
- Eu devia gravar os seus roncos, pra você se convencer - diz ela. E em seguida tem a idéia infeliz. - É o que eu vou fazer! Esta noite, quando você dormir, vou ligar o gravador e gravar os seus roncos.
- Humrfm - diz o velho.

Você, leitor, já deve estar sentindo o que vai acontecer. Pare de ler, leitor. Eu não posso parar de escrever. Às idéias não podem ser desperdiçadas, mesmo que nos custem amigos, a vida ou o sono. Imagine se Shakespeare tivesse se horrorizado com suas próprias idéias e deixado de escrevê-las, por puro comedimento. Não que eu queira me comparar a Shakespeare. Shakespeare era bem mais magro. Tenho que exercer este ofício, esta danação. Você, no entanto, não é obrigado a me acompanhar, leitor. Vá passear, vá tomar um sol. Uma das maneiras de controlar a demência solta no mundo e deixar os escritores falando sozinhos, exercendo sozinhos a sua profissão malsã, o seu vício solitário. Você ainda está lendo. Você é pior do que eu, leitor. Você tinha escolha.

Sozinhos. Os velhos sozinhos na casa. Os dois vão para a cama. Quando o velho dorme, a velha liga o gravador. Mas em poucos minutos a velha também dorme. O gravador fica ligado, gravando. Pouco depois a fita acaba. Na manhã seguinte, certa do seu triunfo, a velha roda a fita. Ouvem-se alguns minutos de silêncio. Depois, alguém roncando.

- Rarrá! - diz a velha, feliz.
Pouco depois ouve-se o ronco de outra pessoa, a velha também ronca!
- Rarrá! - diz o velho, vingativo.
E em seguida, por cima do contraponto de roncos, ouve-se um sussurro. Uma voz sussurrando, leitor. Uma voz indefinida. Pode ser de homem, de mulher ou de criança. A princípio - por causa dos roncos - não se distingue o que ela diz. Mas aos poucos as palavras vão ficando claras. São duas vozes. É um diálogo sussurrado.

"Estão prontos?"
"Não, acho que ainda não..."
"Então vamos voltar amanhã..."

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Alicia Keys ao som de Zeca Baleiro

"Ando tão à flor da pele..."

Os últimos dias foram regados com uma triha sonora diferenciada. Ao som de Alicia Keys, venho a este reduto desenhar umas palavras.

Se fosse um trabalho de faculdade dissertar sobre as reviravoltas que a minha vida deu (ou não) desde o início do mês, podia escrever toda uma monografia, defendê-la e retirar meu título de Mestre em Peripécias.

Mas deixemos de xurumelas.

Jardim

No crepúsculo, a casa é silenciosa. De quando em quando ouve-se risadas de diferentes tons vindas dos mais variados cantos. Um gato passeia, arrogante, com seu olhar instigador e avaliador, parecendo escolher um lugar quente e confortável para dormir.


A noite está fria e nebulosa. A mesa da cozinha está repleta de farelos de pão e guardanapos. Um grupo de amigos conversa, caladamente, sobre o último lançamento dos cinemas. O filme é Alice e o local, Curitiba.


A TV transmite um programa sobre produção e consertos de pneus, e há apenas um par de olhos interessados. Os outros presentes da sala dormem, digitam, leem ou simplesmente arranjam seus pensamentos em uma cidade distante. No quarto ao lado há alguém perdido, preocupado, ao telefone. Na sala de estudos ninguém estuda; o gato encontrou seu lugar. O caminho pelas escadas é sombrio, temeroso, apagado. Em vários quartos há pessoas dormindo o sono do descanso, de mais um dia vencido e vivido.

E, no jardim, finalmente, há alguém. Há alguém em pé, encarando a rua. Há alguém parado, sem notar e ser notado. Há alguém angustiado, perturbado, descalço. No jardim há alguém, simplesmente, pensando.